As coisas estão fora de lugar Não as coisas aqui do meu apartamento Não estou falando do sofá da mesa da geladeira dos quadros das cadeiras Esses objetos essas coisas estão sob minha vigilância permanente desde o dia treze de março de dois mil e vinte Elas estão onde tem que estar embora eu tenha vontade de mexê-las só para causar alguma novidade Quando digo que as coisas estão fora de lugar estou falando do mundo da humanidade da nossa existência dos nossos motivos para estar aqui compartilhando este planeta neste sistema solar nesta galáxia neste tempo-espaço Não que eu não sentisse isso antes mas a pandemia do covid dezenove desperta em mim uma angústia perfurante de que as coisas estão terrivelmente fora de lugar
No dia treze de março de dois mil e vinte uma sexta-feira voltei para casa depois do trabalho já receoso com os primeiros casos confirmados da doença no Rio de Janeiro O carnaval havia terminado há pouco mais de duas semanas Minha casa me chamava mais alto do que a rua já que ainda estava cansado me recuperando dos festejos Na segunda-feira dezesseis de março recebi dos chefes o comunicado de que trabalharia remotamente de casa por tempo indefinido até que a pandemia estivesse sob controle Lá se vão mais de cento e quinze dias e nada de controle
“Isso é fight-or-flight"
Após os primeiros quinze dias comentei num grupo de whatsapp que imagina uma imagem recorrente em que eu corria sem destino pela rua “Fight-or-flight” disse uma amiga
“Lutar ou fugir é uma resposta emocional primitiva completamente normal quando estamos sob muito estresse”
Estranho estar dentro de casa e sentir-se sob tanto estresse Sem o disfarce do desodorante notei que estava fedendo nas axilas Tento me livrar dos químicos quando a situação social permite Guglei para ver se era sinal de alguma doença Fiquei mais tranquilo quando vi pessoas fazendo enquete no Instagram para pesquisar se outros sovacos exalavam medo e ansiedade
“Os dias demoram a terminar, mas os meses correm rapidamente”
Em quarentena sou espectador da vida escorrendo segundo a segundo em direção ao fim Vejo os grãos de poeira se acumulando no rodapé da sala do quarto Um momento de clareza Não é da rua que vem a poeira que me espanta ao fim de cada faxina Sou eu São fragmentos de mim pedaços da minha vida migalhas da morte a lenta decomposição do meu corpo O confinamento me faz notar com lente de aumento que caminho em direção à morte questionando a vida que vivo
Lentamente a ansiedade e o estresse cedem lugar ao tédio A vida virou um padrão de repetição contínuo como se eu fosse um ratinho a correr na gaiola fazendo a minha rodinha girar:
(Acordar-comer-lavar louça-trabalhar-comer-lavar louça-trabalhar-tentar fazer algum exercício-comer-lavar louça-assistir algo para relaxar-dormir) (Repetir)
Essa programação só é interrompida às vezes pelo ocasional hamburguer que chega na porta de casa A repetição ad continuum faz as atividades perderem um pouco do seu sentido
É quase como repetir uma palavra muitas vezes e com isso causar uma separação entre significante e significado
Cadeira cadeira cadeira cadeira cadeira cadeira cadeira
ca-dei-ra
c-a-d-e-i-r-a
O que é uma cadeira? Por quê cadeira? Por quê louça? Por quê lavar louça? Por quê trabalho? Por quê trabalhar?
Enquanto trabalho de casa onde passo a quarentena com minha companheira em um apartamento confortável milhares de trabalhadores precisam sair para a rua para trabalhar se expondo ao risco de contágio levando conforto até quem pode trabalhar de casa Eles vêm até o meu apartamento confortável Recebo compras de supermercado livros acessórios peças de computador hamburguer e pizza aqui na porta
Os entregadores fizeram uma paralisação porque começaram a receber menos agora que estão entregando mais pois na lógica de mercado agora que há mais entregadores disponíveis entregando mais o trabalho deles vale menos apesar da empresa ganhar mais O Ifood já tinha em março cento e quarenta mil entregadores cadastrados e mandava pedidos para outros duzentos mil motoristas empregados diretamente pelos restaurantes A empresa recebeu cento e setenta e cinco mil novos pedidos de cadastramento de entregador quando se iniciou o período de distanciamento social
“Pelo menos eles tem onde trabalhar”
“É uma alternativa de emprego para os dezoito milhões de brasileiros desempregados”
Empresas de tecnologia avaliadas em bilhões que empregam diretamente apenas algumas centenas de funcionários mas conectam centenas de milhares de entregadores oferta e demanda Negócios disruptivos financiados por fundos de investimento alimentados pela promessa de lucro futuro que chegam e chacoalham o mercado vitaminados por dinheiro a perder de vista
Companhias bilionárias que desmontam tudo e não dão lucro Disruptivo é inovação que destrói e não dá lucro É um novo nome para dumping Disrupção alimentada pelo hamburguer que chega na porta da minha casa com apenas alguns cliques Maravilhas dos anos dois mil e vinte
Saio às ruas apenas para comprar comida ou remédios e eventualmente para caminhar bem cedo por volta das seis da manhã Entro num filme distópico pós-apocalíptico pois vejo ruas e avenidas largas com pouca pessoas a maioria usando máscara em uma anormal calmaria Ruas menos frenéticas menos apressadas menos urgentes O mar está mais limpo há menos barulho Num sábado de manhã chego à Marina da Gloria e vejo o fundo de areia e as pedras na beira do cais Uma tartaruga emerge e faz escapar um sorriso no meu rosto Logo aparecem mais tartarugas duas três quatro contei oito tartarugas passeando onde antes havia óleo de barco e lixo flutuante
Para mim é paradoxal sentir falta de uma rua caótica O estranhamento reside aí no fato de sentir que algo está terrivelmente diferente e ao mesmo tempo questionar a normalidade do passado Para onde estávamos correndo quando tudo estava normal? Não é aquele normal justamente a causa de estarmos nessa situação? Vivemos todos aglomerados correndo sabe-se lá pra onde acelerando até o próximo sinal vermelho produzindo mais e mais tentando aumentar o produto interno bruto concentrando riqueza em fundos de investimento que investem em empresas de tecnologia que levam hamburguer na porta da minha casa onde eu gero um monte de lixo que vai parar em um aterro perto de um rio que desemboca na baía de Guanabara e mata tartarugas Estou parado dentro de casa questionando para onde estamos indo
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51272233 - Como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência
https://www.bbc.com/portuguese/geral-49858418 - De Uber a Nubank: as empresas que valem bilhões, mas nunca registraram lucro
Muito bom!!!
tô gostando tanto...