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Foto do escritorfelipefabg

#11. Jogando conversa fora



Quando certa manhã Felipe Gomes acordou de um sonho restaurador, decidiu que gostaria de ter conversas profundas com todos que cruzassem seu caminho. Espreguiçou-se devagar e, aos poucos, despertou o corpo, dando atenção às perguntas existenciais que, por vezes, sorrateiramente pipocam em seus pensamentos. Sentiu a bexiga cheia e notou como tantas funções corporais são completamente alheias à sua vontade. Foi ao banheiro pensando em qual é, de fato, o alcance da consciência humana, considerando que nem nosso próprio corpo está sob total controle.


Arrumou-se para o trabalho e saiu de casa. Ao entrar no elevador, encontrou com a vizinha do andar de baixo e deu bom dia. Ela respondeu sonolenta, ainda com a cama nas costas, e pediu desculpas por um bocejo. Então, Felipe considerou que não era hora a melhor oportunidade para testar sua disposição de buscar uma troca significativa, mas a vizinha não resistiu ao silêncio que se seguiu e comentou que o dia estava quente. “Já imaginou seus filhos daqui a 50 anos, lidando com esse planeta cada vez mais aquecido? Será que eles vão viver em um mundo muito diferente do que a gente conheceu?”. A vizinha balbuciou alguns nãos, mas conseguiu escapar do raciocínio, pois o elevador logo chegou ao térreo, onde Felipe desceria. Despediram-se com a questão no ar.


Chegou ao ponto de ônibus, olhou para o céu indecorosamente azul e imaginou como seria se toda a sociedade pudesse dedicar tempo a apreciar a beleza da natureza sem precisar correr de um lado para o outro. Uns dez minutos se passaram até que chegou outro homem ao ponto de ônibus e perguntou se Felipe estava ali há muito tempo. Olhou no relógio para dar os minutos precisos e logo ouviu a reclamação sobre como o transporte público está cada vez pior. “Teoricamente a gente tem o direito ao transporte público, mas pra tudo precisa de dinheiro, não é? Será que a gente tem mesmo a liberdade de ir e vir?”. O homem concordou que a passagem está mesmo muito cara, mas não entrou na conversa sobre liberdade. O ônibus que esperavam virou na esquina e ambos fizeram o sinal. Felipe pensou que a conversa poderia continuar assim que passassem a roleta, mas o homem evitou contato visual e sentou ao lado de alguém que conhecia, ou fingiu que conhecia.


Felipe desceu no seu ponto habitual e começou a caminhar para o escritório onde trabalha ponderando se em algum momento da história, mesmo que por uma fração de segundo, todos os seres humanos foram felizes ou tristes ao mesmo tempo. Ao chegar, antes de sentar em sua mesa, passou na Copa para pegar um café e uma colega comentou desanimada que tinham um dia inteiro de trabalho pela frente e que às vezes sentia saudade da infância. “Eu me sentia solitário e fora de lugar às vezes. Acho que sou mais confortável na minha própria pele agora. Você deve ter tido uma infância feliz, né?” A colega riu de nervoso, respondeu brevemente que teve uma infância normal e disse que tinha que voltar para a mesa, pois estava atolada de demandas.


No almoço, um cliente do restaurante a quilo brincou que ia seguir as escolhas de Felipe já que era indeciso. “Melhor não pegar tudo como eu vou porque tendo a comer além do necessário. Sabe, às vezes eu vejo a comida como recompensa ou conforto.” Seus pratos tiveram uma diferença de 300 gramas.


Uma operação policial no trajeto de volta para casa fez com que o ônibus de Felipe desviasse da rota usual. Carros de polícia parados nas esquinas, helicópteros sobrevoando, barulhos de tiro. O companheiro de assento falou alto, para se fazer ouvir por todos no coletivo, exaltando a ação da Polícia, que tinha mesmo que dar duro com os vagabundos para que o cidadão de bem pudesse ter paz. Felipe pensou em muitas perguntas, mas calou-se. Queria questionar a existência do bem e do mal, reclamar do absurdo de colocar uma comunidade de milhares de pessoas na linha de tiro para caçar os pretensos cidadãos de mal, porém decidiu que não queria ter uma troca significativa com o senhor exaltado.


Ao chegar em casa, sentiu-se mal e ponderou se não deveria ter tentado demover o senhor de ideias que lhe causaram tanto incomodo. “Será que essa não era a conversa significativa mais importante a ser feita?”.

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